Crónica de Istambul: O Suspiro Azul da História
O som agudo da buzina de um simitci (vendedor de simit, a rosca turca, fresca e estaladiça) ecoa pela vasta e sagrada Praça de Sultanahmet, o coração pulsante do centro histórico de Istambul. O ar está fresco, com um travo a sal que vem do Bósforo, apesar de ser meio-dia, e o burburinho constante de centenas de vozes em dezenas de línguas forma uma banda sonora única para o espetáculo da história.
De repente, o murmúrio da multidão é interrompido por um pregão rítmico e teatral. É um lustrabotas (engraxador de sapatos), que, com a sua caixa de madeira e latão polido, bate levemente no metal, num ritmo que faz lembrar um tambor tribal, anunciando o seu serviço. Ele faz uma pequena encenação, talvez deixando cair propositadamente a escova, chamando a atenção. Oferece um brilho rápido por uma pequena quantia, mas a maioria dos passantes apressa o passo, turistas com câmaras penduradas e locais que parecem já conhecer o seu número. Com um sorriso ligeiro e o olhar sempre atento, continua o seu ritual, a busca pelo próximo par de sapatos que mereça ser adornado. Sem perder a compostura, apanha o utensílio e prossegue a sua jornada, um artista do comércio de rua.
Contraste de Gigantes:
Hagia Sophia e Mesquita Azul
À minha direita, junto a uma das fontes que ladeiam o antigo Hipódromo, um grupo de jovens peregrinos faz uma pausa. Tiram selfies com a monumental Mesquita Azul (Sultanahmet Camii) como pano de fundo. Não falam alto, mas a maneira como os seus olhos vagueiam da cúpula imponente para os seis minaretes esguios, e o modo respeitoso como tocam nos muros de pedra, transmite uma sensação de profunda reverência e admiração. Observo-os por um momento, enquanto eles, por sua vez, tentam capturar a escala e a magnificência da arquitetura otomana, maravilhados.
Do lado oposto da praça, a Hagia Sophia, a antiga catedral bizantina convertida em mesquita, impõe-se com a sua cúpula massiva e robusta.
Ambas dividem a praça, mas contam histórias arquitetónicas distintas.
Hagia Sophia é o auge da arquitetura Bizantina, com uma cúpula gigantesca suportada por pendentivos (uma solução inovadora para a época) e interiores outrora dominados por mosaicos dourados.
A Mesquita Azul, construída um milénio depois no auge do Império Otomano, foi deliberadamente projetada para ser ainda mais grandiosa. O seu estilo é o Clássico Otomano, com um sistema de cúpulas em cascata que apoiam a cúpula principal e um recorde de seis minaretes . O seu nome vem dos mais de 20.000 azulejos de Iznik azuis que adornam o interior, criando uma atmosfera visualmente mais rica e colorida, que contrasta com a sobriedade mais antiga de Hagia Sophia.
Apelo da Noite
A tarde começa a ceder, e a cidade, que vibra num ritmo frenético entre a Europa e a Ásia, parece respirar fundo.
Os grupos de turistas nas visitas guiadas e sozinhos, dispersam-se, e as vielas estreitas que levam ao Grande Bazar começam a esvaziar. A luz quente do sol, já a descer sobre o Bósforo, ilumina as cúpulas e a pedra de calcário, conferindo-lhes um brilho dourado e suave.
Neste momento de transição, um aroma intenso a chá de maçã fumegante e especiarias exóticas (canela, açafrão) vindo dos pequenos quiosques de rua mistura-se com a brisa salgada que sopra do Mar de Mármara. É o perfume inconfundível de Istambul.
Finalmente, a cidade mergulha num silêncio profundo, que só é quebrado pela chamada para a oração do muezzin – o ezan – que começa a soar, melancólica e poderosa, vinda dos minaretes da Mesquita Azul e, em seguida, em resposta, dos de Hagia Sophia. É um dueto sagrado que une as duas estruturas no final do dia e um momento digno de ser ouvido.
Continuo sentado no banco de pedra, absorvendo a magnitude deste momento.
Istambul é, verdadeiramente, uma cidade onde civilizações se encontram, onde o sagrado e o secular coexistem, e onde, mesmo em meio à passagem constante do tempo, há sempre um espaço para a história, a contemplação, e a beleza indescritível.



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