Crónica do Meu Funeral



Morri. Chegou a minha hora, aquela vivemos sabendo que um dia chegará, embora pensemos que só acontecerá aos outros.

A minha alma ainda está por cá. Não sei o que me espera no além, no céu.

Admito que esta transição deixará saudades, essa eterna palavra tão portuguesa. 

A capela do cemitério de São Martinho, está composta. Com pessoas que me amavam, sobressaindo o meu núcleo familiar; outras que me conheciam de vista e ainda alguns que vieram por uma questão social, como se houvesse um controle de ponto celestial garantindo bónus no pós-vida para quem comparece a funerais.

Os meus filhos, a minha mulher e a minha nora estão cá, com os rostos marcados pelo peso da despedida, porque, na verdade, fiz parte das suas vidas. 

Os amigos também aqui se encontram. Alguns seguram a lágrima que atesta a lealdade e a amizade. Lembram-se dos momentos compartilhados, das risadas, das conversas sérias e das tontices ditas no calor de uma poncha ou da cerveja.

A morte tem um efeito curioso sobre a reputação das pessoas. Em vida, há sempre alguém a criticar, duvidar, implicar, invejar e, ainda que inconsciente (ou não) a invejar-nos. Mas, basta morrer para que todos virem fãs póstumos.

O amigo que mal me dava bom dia agora diz que eu era "uma pessoa tão querida". 

O antigo colega de trabalho, hipócrita, balançava a cabeça e murmurava: "Sempre tão profissional...". 

Mas também estão colegas que me acompanharam em toda a minha vida de jornalista.

Alguém que não me via há anos garantiu que "sentiria muito a minha falta".

Há também os que falam do meu "legado", como se eu fosse uma personalidade histórica. O que é engraçado, considerando que, até a morte, poucos ligavam às minhas opiniões. Mas, agora que sou memória, tornei-me um poço de sabedoria.

A cerimónia em si segue o padrão esperado. O padre diz palavras bonitas, em tom solene, lembrando aquela pessoa que conhecia.

Alguém solta um suspiro dramático. 

Outros aproximaram-se do caixão para se despedir com olhares carregados de simbolismo.

Depois do funeral, bem, depois do funeral virá a ressaca emocional. 

A minha ausência será sentida no café da manhã, na minha presença silenciosa, mas atenta, e na amizade sincera.

Os gatos Charlie e Sonowy, sobretudo esta última, deverão sentir a minha falta.

No primeiro mês, deverão falar muito de mim. Comentarão histórias e relembrarão momentos. 

No aniversário de um ano, alguns ainda farão um brinde em minha homenagem.

O movimento na via rápida continuará intenso nas horas de ponta; os navios de cruzeiros chegarão, como sempre, pela manhã e zarparão ao final da tarde; os aviões, quando os limites do vento não impedirem, aterrarão no Aeroporto da Madeira; as árvores e plantas manterão o brilho da vida e da beleza; e o sol nascerá a leste e a pôr-se a oeste. Enfim, o ciclo da vida manterá o seu ritmo. 

Mas o tempo, implacável, seguirá em frente. 

A cadeira que era "minha" no almoço de família será reocupada e os meus pertences deverão ser encaixotados.

No começo, alguém ainda digitará o meu nome no telemóvel antes de se lembrar que não responderei. Com o tempo, até isso desaparecerá.

Até que, um dia, serei apenas uma lembrança esporádica. Uma foto que alguém encontra por acaso e pensa: "Como o tempo passa…".

E é isto uma vida que finda e um novo percurso que se adivinha, do reencontro que entes queridos que partiram anteriormente e que sempre acreditamos que isso seria uma realidade. 

Afinal, morrer é deixar de estar. Mas viver, mesmo que por um tempo finito, foi uma boa história.

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