Crónica no cemitério
Hoje fui ao funeral do pai de uma amiga nossa. Como muitos outros, aconteceu na capela do Cemitério de São Martinho.
Chegamos cedo. Muito cedo. Só lá estava a viúva, a nossa amiga e o marido, que também é nosso amigo, a filha de ambos e o namorado, e mais duas senhoras sentadas nas cadeiras de madeira pesadas e escuras.
Tive muito tempo para pensar na vida e apreciar, com detalhe, o grande painel, em azulejo, que se encontra atrás do altar.
Quantifiquei tudo, sem tomar notas, e é na minha fraca memória que confio para escrever esta crónica no cemitério.
Pois, estamos perante um painel que vai do chão ao teto, com 18 por 28 mosaicos, que perfazem um total de 504 peças.
Na capela, projetada por Chorão Ramalho (1951), domina a obra de arte de Guilherme Camarinha (1958) do arcanjo São Miguel, com grandes asas pintalgadas com pontas de setas ou setas/lanças. Inflige uma grande lança no Satanás, esverdeado, a parecer uma espécie de dragão esguio, com cornos, olhos negros e um rasgo claro no meio. Está deitado sob os seus pés.
Sobressaem, igualmente - e têm sido os motivos que mais olho quando ali vou a um funeral - as mãos. Estão a acenar entre labaredas como que a pedir para salvar os corpos que se adivinham estar ligadas.
São 17 mãos: 9 à nossa direita e 8 do outro lado.
Lá no topo, sobre a cabeça do arcanjo, encontram-se 8 estrelas. Curiosamente, em cada um dos 3 candeeiros do teto, sobre as cadeiras do lado direito da capela, estão 8 lâmpadas em forma de vela.
Todo aquele cenário fantasmagórico levou-me à condição que ali tenho ido sempre, onde fico sentado, quando quem parte não tem muitas pessoas na despedida, ou de pé, quando se passa o contrário.
E dei comigo a pensar, olhando para o caixão do defunto que ia ser cremado daí a pouco, que chegará o dia em que também estarei deitado naquele retângulo apertado de madeiras que tapam a vida que cessa.
Será um momento de grande dor, não por partir, mas sim por quem deixo, que nunca mais verei neste planeta.
Tal como hoje, lá fora, tudo continuará o seu ritmo. Sei que a minha família chorará a minha partida, assim como os amigos mais próximos e, eventualmente, outras pessoas que possam ter tido algum carinho por mim.
Os pássaros continuarão a chilrear, como neste dia, o movimento e as vivências na ilha, assim como no país e no resto do planeta manter-se-ão com o mesmo ritmo, e o sol nascerá pela manhã a leste e por-se-á à tarde, a oeste. Tudo igual, indiferente mesmo à vida física que termina.
Com certeza estarei sereno, livre de stresses e de pessoas que me fizeram mal, despedindo o corpo que acompanha a minha alma, que se tornará pó, depois da cremação.
Além disso, estarei junto dos meus pais que tão cedo partiram e com os quais pouco tempo tive para vivenciar na Terra. Encontrarei também o meu sogro, os meus avôs maternos, a minha avó materna, a minha tia Graça. Enfim... as pessoas que me deixaram saudades e que o tempo vai apagando das memórias.
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