Há sempre uma luz que persiste em Kiev
Faz-se silêncio num lugar onde o som da guerra quase nunca cessa. Estou no centro de Kiev, cercado por edifícios que já viram dias melhores e, agora, parecem cicatrizes na pele da cidade. À minha frente, a Praça da Independência, o coração de Kiev, é um cenário de contrastes. Mesmo no meio do conflito, há vida por aqui, mas é uma vida que se move diferente, num ritmo cauteloso, como se cada movimento carregasse o peso da incerteza.
Há poucas árvores ainda de pé ao redor, mas percebo um som familiar: o canto de um pássaro, um sobrevivente como todos aqui. Pousado numa das árvores danificadas, canta com uma serenidade alheia ao tumulto humano. E, por um instante, o som leve de seu canto sobressai ao fundo de vozes abafadas e ao eco distante de explosões que lembram a todos da frágil tranquilidade em que vivem.
Estou sentado num banco de cimento, mais áspero e desgastado pelo tempo e pelos recentes bombardeamentos.
A cidade, outrora vibrante, agora carrega em cada canto marcas de batalhas recentes. Sem olhar, ouço fragmentos de conversa que flutuam no ar, vozes apressadas e tensas. A língua é ucraniana, mas ouço também palavras em russo, misturadas com expressões de medo e determinação. Um homem de rosto severo e olhar cansado gesticula ao telefone; a sua voz baixa, mas firme, parece guiar alguém a um abrigo próximo. Está concentrado, como se cada instrução fosse vital.
Ao meu lado, uma jovem segura um rádio antigo que chia baixinho, transmitindo notícias de algum lugar não muito distante. Escuta com atenção, e os seus olhos, embora focados no rádio, refletem uma atenção plena ao ambiente em volta.
Um carro militar aproxima-se lentamente, parando a alguns metros de nós. Dois soldados descem, trocando palavras rápidas enquanto ajustam o equipamento. Um deles olha em minha direção por um breve instante, com um olhar sério, e logo volta a se concentrar na tarefa. Não é o tipo de carro que as pessoas esperam ver estacionar numa praça, mas essa tornou-se a nova realidade de Kiev.
Mais adiante, um grupo de voluntários, usando braçadeiras amarelas, carrega caixas e pacotes. Alguns levam cobertores, outros alimentos. Movimentam-se com pressa, mas há um cuidado silencioso nos seus gestos, uma gentileza que contrasta com a rigidez do ambiente. Ao seu redor, alguns transeuntes param, alguns para ajudar, outros apenas para olhar, talvez tentando encontrar esperança naqueles gestos de solidariedade.
No meio do fluxo constante de sons, uma sirene soa ao longe, e a praça inteira parece prender a respiração. Mesmo aqueles acostumados ao perigo olham para cima, com atenção redobrada, à espera de alguma indicação de que podem continuar. Quando a sirene silencia, ouço um leve suspiro de alívio das pessoas ao meu redor. Logo, todos voltam ao que estavam fazendo, mas há um peso novo em cada movimento, uma lembrança de que a paz é temporária.
Perto de mim, uma mulher de meia-idade distribui garrafas de água para quem passa. Entrega-as com um pequeno sorriso, mas o seu olhar está distante, perdido em pensamentos ou lembranças. À minha esquerda, uma jovem fala ao telefone, sua voz trêmula. Pelo que consigo entender, ela tenta assegurar alguém do outro lado de que está segura, embora suas palavras revelem o contrário. O telefone é quase uma âncora, conectando-a a uma normalidade que já não existe.
Ouço agora passos apressados e, ao levantar a cabeça, vejo uma mãe puxando duas crianças, provavelmente em direção a um abrigo. Elas seguram pequenos brinquedos, e uma delas aperta uma boneca desgastada, quase como um amuleto. A mãe murmura algo, tentando acalmá-los, enquanto os seus olhos observam cada detalhe à sua volta, prontos para qualquer sinal de perigo.
Mesmo no meio a tudo isso, há um homem sentado num banco próximo, com um olhar sereno. Observa a praça, talvez recordando tempos em que as ruas eram pacíficas e os risos ecoavam livremente. Ao seu lado, um pombo apanha migalhas no chão, alheio ao cenário à sua volta. A presença dos pássaros, embora discreta, lembra-me que a natureza segue seu curso, indiferente aos conflitos humanos.
Enquanto isso, alguns jovens reúnem-se ao lado de um edifício parcialmente destruído. Um deles, vestindo um casaco escuro, fala com os outros sobre planos de reconstrução, de uma Kiev que, um dia, voltará a ser como antes. Falam baixo, mas é possível ouvir a determinação nas suas vozes. Cada palavra é um voto de confiança no futuro, uma promessa silenciosa de que, apesar de tudo, não desistirão.
À medida que o dia vai escurecendo, as luzes da praça são substituídas por pequenos focos que alguns moradores trazem consigo. A eletricidade aqui é intermitente, e a cidade adapta-se como pode. As sombras alongam-se, e a praça ganha um ar ainda mais desolado. O som dos passos diminui, as vozes tornam-se sussurros, mas o canto do pássaro ainda persiste, um refrão leve e quase irónico no meio ao caos.
Olho uma última vez ao redor, tentando gravar cada detalhe desse momento. A praça, com suas cicatrizes e sua resiliência, é o símbolo de uma cidade que resiste, de um povo que não desiste. A cena parece uma pintura surreal, um retrato de vida e destruição coexistindo. Levanto-me, e, ao dar os primeiros passos para longe, percebo que essa lembrança ficará comigo como um testemunho de que, mesmo nas sombras, há sempre uma luz que persiste.
Deixo a praça, mas o eco das vozes, dos passos, e até do canto daquele pássaro valente, me acompanha.
Comentários
Enviar um comentário