Crónica na avenida em tempos de pandemia

À noite, a cidade fica deserta, cumprindo o recolher obrigatório


Sento-me novamente na Avenida Arriaga. Estou num banco de madeira que pulverizei antes de confiar as minhas calças nestes tempos conturbados devido à Covid que veio mostrar que uma parte dos madeirenses e, os portugueses, de uma forma geral, não sabem viver em democracia.
Dois jovens passam. Vestidos a preceito para o frio, um deles julga-se imune e vai sem máscara. Ainda por cima, pouco favorecido na beleza, ficava a ganhar duas vezes se a usasse.

Faz-se um vazio nesta tarde fria.

Vem do lado da Sé uma senhora de meia idade que parece ter perdido o vapor, com um pé a pedir licença a outro para vencer a distância a passo de caracol. A forma como se veste, atabalhoada, dá a entender que já teve dias melhores.
Em passo de corrida, no mesmo sentido, uma pessoa, da mesma faixa etária, parece ter um peso na cabeça. Inclinada para baixo a partir do tronco, surge de rompante e desaparece no outro lado sempre despachada.

O céu continua carregado de nuvens.

Eis um senhor mais escuro, coitado, deve ter papeira. Traz uma máscara sob a axila, que devia estar a proteger o nariz e a boca.
Outro fala só. Literalmente só numa linguagem impercetível. Também já deve ter tido melhores dias no alinhamento cerebral.
E lá vem um casal de estrangeiros. Pensam também que a viagem lhes trouxe imunidade. O homem traz a máscara no queixo. A mulher passeia a sua beleza, com peneiras até dizer chega. Máscara? Nem sinal dela.
Outro viajante aparece a comer um gelado laranja. A máscara está no queixo. Com este frio, deve estar a seguir o princípio dos incêndios nas serras seguindo a técnica de acender deliberadamente fogo em um lado para que vá ao encontro do outro que grassa, fazendo com que, quando se encontrarem extinga as chamas. Pode ser que resulte com o gelado.

Famílias passeiam com carros de bebé no passeio central da avenida. Estamos a menos de duas horas do confinamento, que é às 19 horas.
Um casal senta-se num banco de pedra. Ela está visivelmente mais cansada. A muleta indica algum problema de saúde. Foi um descanso curto. Já estão em marcha. Nota-se um problema no andar.
Agora é um casal ventoso que se senta aqui perto. Ele, sem máscara, fala ao telefone num silêncio ensurdecedor que se faz ouvir do outro lado da cidade. Ela tem a máscara na mão.

Levantam-se. O homem gesticula e levanta a mão para cima. O frio faz com que guarde a mão no casaco que não combina com os calções que veste.
Um dia passa. Estou de volta à avenida. É sensivelmente a mesma hora de ontem. Praticamente não existem nuvens a tapar o céu azul não muito forte. A tarde está mais quente.

Desde que comecei a escrever este texto hoje, e já vai algum tempo, um senhor de alguma idade percorreu menos de 50 metros. Os anos são complicados, sobretudo no outono da vida, quando surge acompanhado de problemas de saúde..
No sentido contrário, passa outra pessoa vergada por um problema de coluna. Parece que está inclinada continuamente a cumprimentar com deferência alguém importante.
Mas anda depressa, apoiado na sua bengala vermelha.

Uma senhora surge com um casaco para o frio. A cabeça está cabisbaixa. O longo cabelo conjugado com a máscara que tapa mais de meia cara faz com que quase só veja os olhos.
Ali perto uma outra senhora com menos frio, parece ter colocado um pau para segurar o corpo. Passeia toda esticada segurando a trela do cão que não descortino se tem um açaime ou uma máscara preta para o proteger da Covid-19.

Deve ser da tarde. Uma senhora cruza a avenida ligeiramente vergada penso que com problemas de espinha bífida, proporcionando um andar caraterístico de quem padece destes problemas, ondulante.
Levanto-me e deixo a avenida e as pessoas que cruzam aquele largo passeio que absorveu a parte central que separava duas ruas, uma em cada sentido, absorvendo a parte sul.

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