A conversa que ficou para depois com a Clarinha


Uma razão antiga despertou-me para o contínuo o interesse em relevar o valor de uma empresária madeirense que o destino interrompeu muito cedo a sua jornada na Terra. 
Tinha apenas 42 anos. Estávamos em 1974, o ano da liberdade e da democracia em Portugal. 
O cancro tonou inglória a luta que a levou por essa Europa fora à procura da cura para a vida que fugia entre os dedos. Foi um dirimir de forças que se tornou desigual naqueles anos 70. 
A vontade de viver, os sonhos, e a determinação iam-se desvanecendo a cada dia naquele quarto amplo com vista para o mar. O desgosto de deixar os filhos ainda adensava mais a tristeza da empresária que ousou inovar e conseguiu afirmar-se numa sociedade fechada na ilha da Madeira.

E foi porque carrego nos anos passados o desejo de mostrar a empreendedora que conheci muito depressa nos meus primeiros anos de vida que quis procurar quem a conheceu melhor que eu, mesmo vivendo diariamente com ela.

Uma das pessoas que pedi ajuda foi à Clarinha, a simpática Clara Spínola que conheci muito cedo quando ia à sua casa, ali entre o Campo da Barca e a Pena. Ainda me lembro da quinta que já não existe, rodeada de bananeiras e muito verde. Recordo com saudade também a sua mãe.

A Clarinha era uma figura graciosa, simpática, sempre com um sorriso no rosto. Foi a mulher de um brilhante piloto de ralis: o Janica Clemente.

Um dia qualquer de 2020 contactei-a. Perguntei se ainda se lembrava da Irene, sua amiga. Dos sonhos que ela tinha quando era jovem e estudava piano. 

Como esperava, disse-me que se recordava da mulher do Alexandre muito bem e que, quando eu quisesse, tinha a porta aberta da sua casa nas Carreiras para ir e falarmos da empreendedora que abriu o Balão Vermelho, na Rua do Aljube, no Funchal. Uma loja de comércio dedicada às crianças e às senhoras.

Estávamos mergulhados em tempos de pandemia, numa altura em que tínhamos muito receio devido ao desconhecimento da doença. Hoje vemos que nesse tempo, o perigo do vírus na Madeira era residual. Vendo os casos de agora apercebo-me que o receio que tinha de levar algum vírus até à casa da Clarinha, deveria ter sido relativizado. Em boa verdade, não existiam razões para isso.

Os dias passaram. Deram lugar às semanas e aos meses. A ideia não me saía da cabeça, mas o receio do coronavírus e a vida diária não permitia aberturas.

Chegamos a dezembro, uma altura que nos traz alegria pelo Natal que se aproxima. Mas aquele último mês de 2020 deu-me um soco na barriga quando soube que a Clarinha tinha ido ter com a Irene e com o seu Janica, que não tinha partido há muito tempo.

A conversa ficou adiada. Por cá, nesta Terra que gira sem parar e em que vivemos, jamais conseguirei.

Comovido, li a última mensagem que a Clarinha me enviou a dizer que poderia falar com ela em qualquer dia. Referia que seria bom que a avisasse antes pois, por vezes, tinha de ir ao hospital, mas nunca ao sábado. Portanto, aquele dia seria bom. Não valorizei a parte das idas ao hospital. Admiti que fosse uma rotina qualquer como fazer fisioterapia. Só mais tarde me apercebi que também esteve doente antes de nos deixar. Realidade que jamais me confidenciou.

Nessa mensagem recordou os meus pais, a Irene e o Alexandre, o meu irmão mais velho, o Jana, e os enjoos da minha mãe quando estava grávida dele. E lembrou ainda os jogos de dominó e de cartas que preenchiam o tempo na casa dos meus avós maternos que eu tanto gostava.

A Clarinha terminou essas mensagens dizendo: "Grandes memórias...". Pois eram, e eu queria tanto consegui-las. 

Confesso que fiquei muito triste com a partida da Clarinha. Não por ficar sem saber as memórias, mas sim pela Clarinha que desde criança sempre admirei e retenho o seu eterno sorriso. 

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