O som dos passos





A cidade amanheceu deserta.
De manhã continuou sem ninguém nas ruas nem nos passeios.
Anoiteceu e ficou ainda mais sozinha, acompanhada do escuro da noite.
Os dias seguintes continuaram a mesma monotonia no Funchal cosmopolita.
Poucos carros rasgam o silêncio. O chilrear dos pássaros nas árvores em flor sobressai.

Caminho na Avenida Arriaga. Quase poderia ir pelo empedrado da rua, ou no asfalto, mas continuei no passeio de Calçada Portuguesa. Ouço um som que não vem dos pássaros. Nem dos carros, dos pouquíssimos que circulam. Nem das pessoas que estão ausentes.
Aquele som que ouvi rompia a cidade calma e, curiosamente, incomodava. Das primeiras vezes parei e olhei para uma sola e para outra para ver se tinha alguma coisa colada. Mas estava limpa. O barulho não era nada estranho aos sapatos, embora ficasse sem saber a que se devia.
Continuei. O som estranho, também. Acompanhou-me em cada passo.

Cheguei ao Celeiro, na Rua do Aljube, mesmo ao lado da Sé do Funchal. Fui comprar vitaminas. Com entradas limitadas, entrei e, curiosamente, o som ficou à porta. Lá dentro não o ouvia.Estava mais gente, é verdade, mas a ausência do som intrigou-me ainda mais.
Saí da loja. O som esperava-me à porta e fez questão de me acompanhar. De vez em quando desaparecia na mesma Calçada.

Experimentei perceber a razão dos barulhos e das suas ausências. Num passeio igual, apenas as duas cores diferenciam as pedras. Nas brancas, de calcário, o barulho sobressai, e, nas pretas, de basalto, é absorvido.
Dei por mim a ziguezaguear, a pisar o branco predominante, e o preto das figuras. Felizmente não encontrei vivalma, ou praticamente ninguém, pois pensariam que a pandemia estava a fazer-me mal.
Apercebo-me que o som vinha dos meus sapatos, do atrito que faziam com as obras de arte que piso e embelezam a cidade.
É um som estranho que nunca tinha ouvido destes sapatos, com sola de borracha, que os tenho desde o tempo em que havia gente a andar de um lado para outro. Gente que conversava num tempo de normalidade. E também dos carros e motas com sons que já me eram familiares, mas que abafavam tudo o resto.

Por isso, só no silêncio ouvi o barulho dos meus passos. De uma sola de borracha que deveria ser silenciosa. Era como se tivessem dado lustro ao chão com um produto abrilhantador, porque as pedras brilhavam, e as raras pessoas que se aventuravam eram insuficientes para evitar que ouvisse aquele som intrigante.
A verdade é que talvez fosse assim nos dias em que a vida descia à cidade.
O som que ouvi deveria estar lá na cidade movimentada que o escondia. Ou, quem sabe, o constante pisar da calçada a toda a hora não a deixasse quase polida e, a haver som, seria outro.

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