O "Americano" e o Comboio

Olho na direção da ponta mais a norte do Palácio de São Lourenço. Tento perceber como seria a guarita quase suspensa, que nunca conheci, ou não me recordo de a ver. Ficava à frente daquelas linhas cilíndricas, encimadas por aquela forma de funil ao contrário.
As nuvens desviam o olhar. Despertam-me neste dia fresquinho na cidade do Funchal. As abertas, criadas pela brisa do ar, que deixam trespassar o sol, moldam formas nas nuvens. Uma assemelha-se a um cavalo e até parece que o ouço relinchar...
… o som torna-se mais insistente...
Ao meu lado estão três cavalos verdadeiros, emparelhados. Um responde descontente ao puxar dos arreios de forma brusca pelo homem sentado na carruagem montada sobre carris na Praça da Constituição.
À minha volta, estão muitas crianças e adultos, alguns com chapéu, a ver o “americano” que se prepara para partir cheio de turistas dos navios fundeados na baía. Faz ligações diárias até à Estação do Pombal onde vou apanhar o comboio que me levará nesta manhã de abril de 1910 até ao Monte. Lá fica a casa de familiares onde passarei uns dias.
Subo e sento-me.

O carro americano, de três cavalos, passa pela Ruas do Aljube e na Rua do Bettencourt, e sobe. Vagarosamente, galga a Rua da Princesa, com a ribeira de Santa Luzia à esquerda. Passa um leiteiro que cumprimenta com o chapéu. Vem carregado de latas, com leite ordenhado durante a noite, e medidas para entregar a quantidade desejada em cada casa.
Cruzo ainda com dois carregadores, já arqueados pelo peso, com um pau sobre ombro direito. De um lado e de outro têm penduradas cestas de vimes, em equilíbrio. Levam o almoço para pessoas que vivem na periferia, que trabalham no centro e não têm possibilidade de ir a casa.

Chego à Estação do Pombal. Compro o bilhete para o Monte e sento-me num dos lugares da frente da carruagem do comboio que está quase cheia. Uma parte são turistas que viajaram comigo no “americano”.
Solta o silvo. Cá vou eu, muito devagar, nesta parte pouco íngreme da ligação ao Monte.
O casario é pouco. Neste início, tem umas três casas à direita perto da linha.

Depois, há mais plantas e árvores do que casas, que só aqui e ali pincelam os lados afastados da acentuada subida. O comboio faz a primeira curva e vejo lá em cima os hotéis.
Chegamos à estação da Levada de Santa Luzia, a primeira da linha a ser inaugurada, a 16 de julho de 1893. Saem dois passageiros e entra um.
A carruagem de passageiros retoma a marcha empurrada pela locomotiva a vapor que ganha mais tração com o sistema de cremalheira que interliga ao centro das linhas onde assentam as rodas.

Até chegar ao destino final, no Monte (a segunda etapa das obras e expansão da linha, inaugurada a 5 de agosto de 1894), o comboio pára ainda nas estações do Livramento, da Quinta Sant’Ana, Flamengo, Confeitaria, Atalhinho (Monte) e, finalmente, o Largo da Fonte, onde muitas pessoas esperam os passageiros que chegam.
Um pouco antes de terminar a viagem, vejo descer um carro de cestos no caminho empedrado, ao lado da linha. Nele vai um senhor de fato e chapéu de palha, igual aos que os dois carreireiros usam, mas que estão vestidos de branco e com um colete preto.

No Monte, os meus familiares esperam-me e sigo com eles para a quinta. Deixo para trás o comboio que regressará ao Funchal com a mesma configuração, mas com a máquina a travar a descida.
Pelo caminho olho a cidade distante embelezada com navios na baía.

O céu continua coberto. As nuvens parecem estar mais perto. As formas moldadas pelo vento despertam-me.
O cavalo branco desfez-se. Forma-se o que parece ser uma bicicleta…
… trim, trim, trim, trim… desvio-me a tempo de um jovem ciclista que circula desenfreado no passeio central da Avenida Arriaga onde andam residentes e muitos viajantes de todo o mundo, na cosmopolita cidade do Funchal.

Não vejo sinais do “americano”, nem das pessoas vestidas com roupas domingueiras.
Afinal, andei a divagar.
Não houve subida ao Monte no comboio que chegou ao Terreiro da Luta em julho de 1912. Tinha então uma linha com 3.911 metros de comprimento e ia de uns 150 metros de altitude aos 850 metros.
A 10 de setembro de 1919 deu-se uma explosão na caldeira da locomotiva, ao subir para Monte, provocando 4 mortos e vários feridos, entre os 56 passageiros. A 11 de janeiro de 1932, o comboio descarrilou.
Em abril de 1943 fez a última viagem e a linha foi desmantelada pouco tempo depois.
Hoje ainda resta a Estação do Pombal e o nome no caminho que rasga a montanha para lembrar que durante meio século ali circulou o Comboio do Monte... u-uuu, u-uuu...

Paulo Camacho

paulosilvacamacho@gmail.com

In JM 30.07.2018

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